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É essencial cuidar das emoções

Ação da LBV reinventa-se para promover a afetividade e levar benefícios ao público infantojuvenil, apoiando famílias em vulnerabilidade social

Ana Paula Ferreira

O dia 12 de outubro, dedicado às crianças no Brasil, trará em suas comemorações, neste ano de 2020, reflexões bem mais complexas. Desde março, essa turminha não tem podido desenvolver a habilidade social, afinal está longe da escola (só agora algumas cidades ensaiam a volta às aulas), bem como dos amigos, colegas e mesmo de familiares que são do grupo de risco (avós e pessoas com comorbidades), para que se evite o contágio do novo coronavírus. Diversos especialistas da área médica têm alertado para o estresse tóxico vivido durante o período, lembrando aos pais e aos responsáveis a necessidade de buscar ajuda a fim de que se possa atenuar as consequências, no futuro, desse turbilhão de sentimentos vividos na atualidade.

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Diego Ciusz

A pesquisa “Impacto da Covid-19 na saúde das gestantes, novas mães e seus filhos”* — divulgada, em agosto, pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) — mostra que quase nove em cada dez pediatras (88%) dizem que crianças apresentaram alterações de comportamento durante a pandemia.

Outro dado do levantamento, que deve ser observado com atenção, revela que as oscilações de humor, como passar de felizes e ativas para taciturnas e retraídas, são também relatadas por 75% dos médicos. O documento destaca ainda mudanças importantes observadas, a exemplo de ansiedade, irritabilidade, depressão, agitação, insônia, tristeza, agressividade e aumento de apetite.

Por isso, a equipe da Legião da Boa Vontade (LBV) tem se reinventado a cada dia para criar maneiras diferentes de estar próxima e acolher seu público infantojuvenil, que, por sinal, representa a maior taxa do atendimento prestado: 55% do total, como se poderá ver nesta reportagem especial.

Diego Ciusz

Arquivo BV

Aprendizado com alimentos

Para distrair a garotada nesta rotina diferente nos lares, os pais das meninas e dos meninos atendidos pelo serviço Criança: Futuro no Presente! em Aracaju/SE têm experimentado algumas atividades de culinária. Uma delas ensinou a fazer cuscuz salgado, prato típico do nordeste brasileiro. Carla Santos e os filhos Haylla, 8 anos, e Henry, de 9, adoraram a iniciativa. A família utilizou os ingredientes que recebeu na cesta de alimentos da Legião da Boa Vontade e colocou a mão na massa. “Eles fizeram a maior parte; eu só coloquei no fogo”, comentou a mãe. As atividades não presenciais  oferecidas pela LBV inspiram novos aprendizados: “Eles me ajudam na cozinha; eu boto todos pra participar”, destacou ela.

Além disso, Carla ressalta: “As notas dos meus filhos já eram boas, mas, depois que vieram para a LBV, eu senti que ganharam mais entusiasmo no estudo”. E conclui falando da falta que sentem de frequentar a Instituição: “Eles sempre perguntam quando vão voltar à LBV [de forma presencial]”.

Vivian R. Ferreira

A pesquisa apresentada na abertura desta matéria traduz em números aquilo que tem sido percebido por quem lida com as novas gerações. Gestores, assistentes sociais e pedagogos da Legião da Boa Vontade que atuam no serviço Criança: Futuro no Presente! — promovido pela Instituição em 60 cidades, de todas as regiões do Brasil — desde os primeiros dias desse “novo normal” estão atentos ao que pode significar o isolamento social para essa faixa etária.

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Para a LBV, várias questões nortearam as medidas adotadas por ela. Em primeiro instante, com a suspensão temporária do serviço presencial, a tarefa foi ampliar a rede de Solidariedade a fim de angariar alimentos não perecíveis para que as famílias dessas meninas e desses meninos — que tinham garantidas na Instituição as principais refeições do dia — não viessem a sofrer com a falta de comida. O movimento cresceu e passou a oferecer também cestas verdes (com verduras, legumes e frutas) e kits de limpeza, o que tem ajudado a garantir a higienização vital neste momento.

Como muitas das famílias atendidas pela Entidade são numerosas e residem em casas bem pequenas, com ambientes que não permitem a realização de uma série de práticas e vivências que moradias bem equipadas possibilitam, o distanciamento social é acrescido de mais problemas. Por isso, o esforço dos educadores da LBV em reinventar suas práticas pedagógicas, planejar e disponibilizar às crianças e aos adolescentes atividades de música, dança, artes manuais, brincadeiras recreativas e jogos cooperativos, até a retomada das atividades presenciais. E o meio encontrado para isso foi a criação de grupos no WhatsApp para o envio das atividades. A escolha do aplicativo deu-se pela facilidade de acesso a ele até mesmo a famílias com menos recursos materiais, que vivem nas periferias das cidades. Quem não tem o recurso digital pode retirar o material impresso na unidade da Instituição.

A preocupação da LBV em fortalecer vínculos familiares

Diego Ciusz

Em Criciúma/SC, a psicóloga Suellen Guollo explica que a Instituição fez um planejamento para que as equipes de todo o país buscassem, mesmo à distância, manter o objetivo principal de fortalecer os vínculos familiares e a afetividade e promover momentos de interação, como também minimizar os impactos emocionais do distanciamento social.

Ela conta que o primeiro passo foi “pensar em atividades nas quais as crianças expressassem como estavam se sentindo neste período de pandemia. [O objetivo era] ter esse contato, o retorno delas. Agora, estamos propondo práticas lúdicas, brincadeiras para promover a descontração, das quais o adulto pode e deve participar também, pois elas estimulam a afetividade em família. Essa atitude auxilia a diminuir os níveis de ansiedade e de estresse”.

Diego Ciusz

Segundo a psicóloga, com todo mundo em tempo integral na residência, “ocorrem mais conflitos entre as pessoas. É preciso nesta hora manter a calma para tomar decisões mais sábias, analisar as situações de forma realista e clara, para lidar com as emoções, com os sentimentos, e ser uma boa referência para os pequeninos. Eles também estão com o emocional abalado e precisam encontrar nos adultos a calma, a maneira [adequada] para superar a ansiedade, a frustração e a tristeza que estão sentindo”.

Suellen afirma que o resultado de levar essas práticas e orientações tem sido igualmente um grande incentivo aos colaboradores internos da Entidade. “Quando o familiar de uma criança chega até nós e relata: ‘Ah, a minha filha chorou de emoção quando viu o vídeo da LBV, porque ela estava com saudade dos profissionais, dos colegas’, nós nos comovemos, pois vemos o retorno do que estamos realizando, vemos que é um bom caminho.”

Saudade, palavra mais proferida

Diego Ciusz

Única do idioma português, verbalizar quanto sentem falta do que vivenciam na Legião da Boa Vontade é uma maneira de deixar o coração mais leve para seguir em frente. Por isso, talvez, a palavra saudade foi tão repetida pelas crianças e pelos adolescentes que esta reportagem conversou. Na casa de Patrícia Justino Batista, 35 anos, que tem quatro dos seus cinco filhos (com idades entre 3 e 12 anos) inscritos no serviço Criança: Futuro no Presente! na unidade da Instituição em Criciúma, não foi diferente. “Eu acho [tudo] bem criativo, legal”, disparou Maria Laura, 12 anos. João Gabriel, de 10, com nostalgia, também disse que o contato com os educadores, mesmo que de forma remota, traz as melhores recordações: “Lembro das festas, das brincadeiras, de tudo que a gente fazia”.

Patrícia contou que se aproximou da Instituição ao se ver sozinha para prover o lar. “A LBV me ajudou a voltar ao mercado de trabalho e com alimentação, porque a gente que é só passa muitas dificuldades. Havia momentos que não tinha o que dar para eles, tanto no café da manhã como no almoço. [Na Instituição], eu me senti segura, sabendo que no dia seguinte meus filhos iam acordar, ir para a LBV, ter o que comer. Isso muda a nossa vida.

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Com a chegada da pandemia, a renda da família diminuiu. Ela, que vendia perfumes e produtos de beleza, viu os fregueses sumirem. Além disso, a rotina organizada da casa, com horários fixos, foi totalmente alterada. “Eles estavam acostumados num ritmo, a sair de manhã e voltar no fim do dia, agora, é um pouco mais difícil.”

O isolamento mexeu com os filhos: “Eu notei que estão impacientes e, às vezes, mais emotivos. Temos de buscar equilíbrio para lidar [com eles nesses momentos]”.

O suporte da Legião da Boa Vontade tem sido decisivo nestes tempos de incertezas. “O apoio psicológico faz toda a diferença. Sempre ligam me incentivando, dando forças, procurando saber como estão as crianças.” Tudo isso torna possível vencer as adversidades: “E [as atividades remotas da LBV] são muito importantes, porque, às vezes, a gente se pega pensando nos problemas, e, aí, vem aquele momento de distração, que faz a gente esquecer o que é ruim e lembrar de coisas boas. Isso nos aproxima uns dos outros bem mais”.

Ana Paula Ferreira

De norte a sul deste imenso país, de vários Brasis, a presença da Legião da Boa Vontade vai atendendo às necessidades de centenas de famílias, entregando benefícios materiais, apoiando o emocional e construindo com elas ferramentas de transformação pessoal e social. No Centro Comunitário de Assistência Social da Obra em Ananindeua/PA, são 210 meninas e meninos beneficiados pelo serviço Criança: Futuro no Presente! A unidade está localizada no Centro, em uma área de vulnerabilidade social, com grande número de comunidades no entorno.

Lá, a atendida Maria Vita Pires da Cruz, de 44 anos, mostra como a realidade da pandemia pressiona as mães solo. Por diversos motivos, teve de assumir sozinha a criação dos quatro filhos e, graças ao suporte da Legião da Boa Vontade, há cerca de dois anos, tem conseguido superar várias restrições, com a inscrição  dos três meninos mais novos no serviço Criança: Futuro no Presente! “A LBV abriu a porta para mim, me deu apoio, tanto psicológico — porque eu estava passando por um processo complicado, fiquei depressiva — como [social], por estar desempregada. Às vezes, meus filhos precisavam de leite, e não tinha, era preciso dividir um ovo para nós cinco. [Foi] quando me indicaram a Instituição”, contou.

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Graças a esse acolhimento, ela pôde encontrar tempo e segurança para buscar o sustento do lar com a venda de lanches em uma barraquinha em frente a uma escola próxima de sua residência. Com a pandemia e os colégios fechados, a renda caiu, mas, com a cesta de alimentos recebida da LBV e a venda de salgadinhos que faz em casa, tem conseguido driblar as adversidades.

Diego Ciusz

Maria, que mora de aluguel em uma quitinete (com dois cômodos), sentiu uma mudança de humor dos meninos com o distanciamento social forçado pela pandemia. A mãe agradece pelos kits lúdicos e pelas atividades propostas pelos educadores da Entidade, que ajudam os garotos a ocupar o tempo de forma educativa e alegre, além de aproximá-la deles, o que faz Maria escutá-los e incentivá-los a expressar os sentimentos. “A gente tem um dia corrido, é cozinhar, limpar, lavar, arrumar... Os filhos chamando, e eu sempre ocupada. Então, quando vem a atividade, a gente tem de se sentar e fazer junto. É um modo de dar um pouco de atenção para as crianças. E elas fazem esses trabalhos com carinho, atenção. Os meninos sempre perguntam quando vêm mais, porque gostam bastante.”

Para os garotos, é fundamental esse tempo em que aprendem brincando. As oficinas de Arte são as preferidas deles, Júlio César, de 6 anos, o caçulinha da casa, que o diga, “adoro pintar”. O Jefferson, de 7, prefere desenhar e mandou um recado aos profissionais da LBV: “Que eles tenham paz, amor e alegria!” Já o Josiel, de 9, gosta de trabalhar com argila, mas manda muito bem na pintura. Assim, concluiu essa mãe guerreira, eles encaram melhor o dia a dia, com mais paciência, até tudo isso passar.

Vale também prestar atenção no que destacou a psicóloga Suellen Guollo aos responsáveis: “Vamos aproveitar esse tempo de maior convívio para estreitar os laços de Amor, buscando atividades em família que aproximem você de seu filho, da criança com a qual convive, para que ela possa enxergar em você alguém que tem afeto, carinho por ela. Temos de utilizar este momento para não apenas estarmos no mesmo espaço físico, mas para ficarmos mais próximos afetivamente. Esse é um laço que vai perdurar pelo resto da vida. Tudo aquilo que a gente cria em família, essas ligações, quanto mais fortalecidas, melhores benefícios trarão para todos”.

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*O levantamento foi realizado por meio de questionário on-line, entre os dias 20 de julho e 16 de agosto, com 1.525 profissionais, sendo 951 pediatras e 574 ginecologistas e obstetras de todo o Brasil.